Você vai bem? Desculpe por não ter escrito antes. Não há motivo para isso, é só que tenho muito a dizer e não sei por onde começar. Por favor me desculpe.
Já é tarde demais para lhe implorar que perdoe o meu erro terrível e irreversível, mas eu ainda quero lhe dizer: querida Yulong, eu sinto muito!
Você me fez duas perguntas na sua carta: "por que você não quer ver o seu pai" e "o que a faz pensar em desenhar uma mosca e por que foi que a fez tão bonita".
Querida Yulong, essas duas perguntas são muito, muito dolorosas para mim, mas vou tentar responder.
Qual é a menina que não ama seu pai? Um pai é uma grande árvore abrigando a família, as vigas que sustentam uma casa, o guardião de sua mulher e de seus filhos. Mas não amo meu pai - eu o odeio.
Na véspera do Ano-Novo do ano em que fiz onze anos, levante bem cedo e, inexplicavelmente, estava sangrando. Fiquei tão assustada que me pus a chorar. A minha mãe, que veio ter comigo quando me ouviu, disse: "Hougxue, você cresceu". Ninguém, nem mesmo ele, tinha me falado sobre coisas de mulher antes. Naquele dia, mamãe me deu uns conselhos básicos sobre como lidar com o meu sangramento, mas não explicou mais nada. Fiquei entusiasmada: tinha me tornado mulher! Saí correndo pelo quintal, pulando e dançando durante três horas. Até esqueci do almoço.
Um dia, em fevereiro, estava nevando muito e mamãe tinha saído para visiar uma vizinha. Meu pai tinha vindo da base militar, para uma das suas visitas. Ele me disse: "Sua mãe diz que você cresceu. Vamos, tire a roupa para o papai ver se é verdade".
Eu não sabia o que ele queria ver, e estava muito frio - eu não queria tirar a roupa.
"Rápido! O papai ajuda!", disse ele, tirando-me a roupa com destreza. Ele, que normalmente tinha os movimentos lentos, estava totalmente diferente. Começou a passar as mãos pelo meu corpo inteiro, perguntando o tempo todo: "Esses mamilozinhos já incharam? É daqui que o sangue vem? Esses lábios querem beijar o papai? é gostoso quando o papai passa a mão aqui, assim?".
Eu me sentia morta de vergonha. Pelo que me lembrava, nunca tinha estado nua na frente de ninguém, exceto nos banhos públicos separados. Meu pai notou que eu estava tremendo. Disse-me que não tivesse medo e me preveniu para não contar nada à mamãe. "Sua mãe jamais gostou de você", disse. "Se ela descobrir que eu amo você tanto assim, vai querer saber ainda menos de você."
Essa foi a minha primeira "experiência de mulher". Depois, tive uma náusea muito forte.
A partir de então, bastava que minha mãe não estivesse na sala - ainda que estivesse só na cozinha, cozinhando, ou no banheiro - para que meu pai me prensasse atrás da porta e me alisasse inteira. Fui ficando com um medo cada vez maior desse "amor".
Mais tarde ele foi transferido para outra base militar. Minha mãe não podia ir junto por causa do emprego dela. E disse que tinha se esgotado criando a mim e ao meu irmão e que queria que meu pai cumprisse suas responsabilidade por um tempo. Assim, levou-nos para morar com ele.
Eu tinha caído na toca do lobo.
A partir do dia em que minha mãe foi embora, toda tarde meu pai se enfiava na minha cama enquanto eu descansava. Ocupávamos um aposento num dormitório coletivo e ele usava a desculpa de que meu irmãozinho não gostava de cochilar à tarde para trancar a porta e deixá-lo do lado de fora.
Nos primeiros dias, só passava as mãos pelo meu corpo. Depois começou a forçar a língua dentro da minha boca. Aí começou a me cutucar com a coisa dura na parte inferior do seu corpo. Vinha para a minha cama, já sem ligar se era dia ou noite. Usava as mãos para me abrir as pernas e me molestar. Até enfiava os dedos dentro de mim.
Naquela altura tinha parado de fingir que era "amor paterno". Ameaçava-me, dizendo que, se eu contasse para alguém, seria criticada em público e teria que desfilar pelas ruas com palha na cabeça, porque eu já era o que chamavam de "um sapato usado".
Meu corpo, que ganhava formas rapidamente, o deixava cada vez mais excitado, enquanto eu me sentia mais e mais aterrorizada. Pus um cadeado na porta do quarto, mas ele não se importava de acordar todos os vizinhos e batia até que eu abrisse. Às vezes enganava as outras pessoas no dormitório e elas o ajudavam a forçar a minha porta, ou então dizia que precisava entrar pela janela para pegar alguma coisa porque eu tinha o sono muito pesado. Outras vezes era meu irmão quem o ajudava, sem entender o que fazia.Assim, trancasse eu a porta ou não, ele entrava no meu quarto, em plena vista de todos.
Quando ouvia as batidas, eu com frequência ficava paralisada de medo e me enroscava tremendo embaixo do acolchoado. Os vizinhos me diziam: "Você estava dormindo como uma morta. O coitado do seu pai teve que entrar pela janela para pegar as coisas dele!".
Eu não ousava dormir no meu quarto, não ousava ficar sozinha de maneira alguma. Meu pai percebeu que eu estava sempre encontrando pretextos para sair e criou a regra de que eu tinha que estar de volta na hora do almoço, todo dia. Mas era comum eu adormecer antes mesmo de terminar de comer: ele estava pondo remédio para dormir na minha comida. Eu não tinha como me proteger.
Muitas vezes pensei em me matar, mas não tive coragem de abandonar meu irmãozinho, que não teria ninguém a quem se voltar. Comecei a ficar cada vez mais magra, até que adoeci gravemente.
Na primeira vez em que fui internada no hospital militar, a enfermeira de plantão disse ao médico, dr. Zhong, que eu tinha o sono muito perturbado. Acordava assustada ao mais leve ruído O dr Zhong, que não conhecia os fatos, disse que era por causa da minha febre alta.
Mas, mesmo enquanto eu estava assim doente, meu pai vinha ao hospital e se aproveitava de mim, que estava com um tubo na veia e sem poder me mexer. uma vez, quando o vi entrando no meu quarto, comecei a gritar descontroladamente, mas meu pai simplesmente disse à enfermeira - que viera correndo - que eu tinha muito mau gênio. Naquela primeira vez só passei duas semanas no hospital. Quando voltei para casa, encontrei meu irmão com um machucado na cabeça e manchas de sangue no casaco. Contou que o papai estivera de péssimo humor enquanto estive no hospital e o surrava ao menos pretexto. Naquele dia o animal doentio que era o meu pai apertou-se enlouquecido contra o meu corpo, ainda desesperadamente frágil e fraco, sussurrando que tinha morrido de saudade de mim!
Não pude conter o choro. Aquele era o meu pai? Tinha tido filhos só para satisfazer seus desejos animalescos? Dera-me a vida para quê?
Minha experiência no hospital tinha me mostrado um jeito de continuar vivendo. Injeções, comprimidos e exames de sangue eram preferíveis a viver com o meu pai. Assim, comecei a me ferir repetidamente. No inverno, encharcava-me de água fria e saía para o gelo e a neve. No outono, comia comida estragada. Uma vez, em desespero, estendi o braço embaixo de um pedaço de ferro que estava caindo, para cortar a mão esquerda na altura do pulso. (Não fosse por um pedaço de madeira macia embaixo, eu certamente teria perdido a mão.) Nessa ocasião, ganhei sessenta noites inteiras de segurança. Entre ferimentos que eu mesma me causava e os remédios, fui ficando aflitivamente magra.
Mais de dois anos mais tarde, minha mãe conseguiu uma transferência no emprego e veio morar conosco. A sua chegada não afetou o desejo obsceno que meu sentia por mim. Disse que o corpo dela estava velho e murcho e que eu era a concubina dele. Minha mãe não parecia notar a situação, até que um dia, no final de fevereiro, quando meu pai estava me batendo porque eu não tinha lhe levado alguma coisa que ele queria, gritei com ele pela primeira vez na vida, dividida entre mágoa e raiva: "O que você é? Bate em todo mundo quando tem vontade, molesta qualquer um quando quer!"
Minha mãe, que assistia à cena, perguntou o que eu queria dizer com aquilo. Assim que abri a boca, meu pai, encarando-me furioso, disse: "Não diga absurdos!".
Eu não aguentava mais e contei a verdade à minha mãe. Vi que ela ficou terrivelmente perturbada. Mas, poucas horas depois, a minha "sensata" mãe me disse: "Pela segurança da família toda, você vai ter que suportar isso. Caso contrário, o que é que nós todos vamos fazer?".
Minhas esperanças foram completamente destruídas. Minha própria mãe me dizia que tolerasse os abusos de meu pai, marido dela. Onde estava a justiça disso?
Naquela noite minha temperatura chegou a quarenta graus. Fui novamente trazida para o hospital, onde continua até agora. Desta vez não tive que fazer nada para provocar a doença. Simplesmente desmaiei, porque tinha tido um colapso cardíaco. Não tenho intenção alguma de voltar para aquele suposto lar.
Querida Yulong, é por isso que não quero ver meu pai. Que espécie de pai e ele? Não digo nada por causa do meu irmãzinho e da minha mãe (ainda que ela não goste de mim). Sem mim, eles ainda são uma família como antes.
Por que foi que desenhei uma mosca e por que foi que a fiz tão bonita?
Porque anseio por uma mãe e um pai de verdade; uma família de verdade, onde eu possa se um criança e chorar nos braços dos meus pais; onde eu possa dormir em segurança na minha cama, em casa; onde mãos carinhosas me afaguem a cabeça para me consolar depois de um pesadelo. Desde a infância mais tenra, nunca tive esse amor. Esperei e ansiei por ele, mas nunca tive, e agora jamais o terei, pois só se tem uma mãe e um pai.
Uma mosquinha me mostrou um dia o toque de mãos carinhosas.
Querida Yulong, não sei o que vou fazer depois disso. Talvez eu a procure para ajudá-la de alguma forma. Posso fazer muitas coisas e não tenho medo de dificuldades, desde que possa dormir em paz. Você se importa se eu for? Escreva e me diga, por favor.
Eu gostaria mesmo de saber como você vai. Continua praticando o seu russo? Você tem remédios? O inverno está chegando de novo, você precisa se cuidar bem.
Espero que me dê uma oportunidade de remediar o mal que causei e fazer alguma coisa por você. Não tenho família, mas espero poder ser uma irmã mais nova para você.
Desejo-lhe felicidade e boa saúde!
Sinto Saudade de você.
Hongxue, 23 de agosto de 1975.
(Cara tirada do Livro "As Boas Mulheres da China", autora XINRAN)
(Cara tirada do Livro "As Boas Mulheres da China", autora XINRAN)
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