quinta-feira, 30 de outubro de 2014

escuta, chris

, é uma pena que tudo isso um dia vá acabar porque inevitavelmente vai acabar como todas as coisas acabam e você tão cara e tão necessária pra mim nesse momento vai se tornar apenas numa referência uma mulher que marcou certo período da minha vida e com o tempo vai ficar só seu nome porque nem os traços do seu rosto eu vou conseguir lembrar as coisas do mundo vão sendo entendidas por camadas do nosso pensamento até que as entendemos de forma tão definitiva que parece que sempre soubemos delas

uma pergunta. e uma resposta.

- Quanto tempo você quer viver?
- O suficiente pra não sofrer demais.

possível final 1

Sentados em volta da mesa. Uma vela acesa no meio. Luzes apagadas, janelas fechadas. Conversamos.

Ricardo diz que uma das coisas que ele mais gosta no teatro é o tanto que se troca com alguém em cena. Essa partilha de uma intimidade que abrange um outro pedaço da vida. Uma cumplicidade de uma outra ordem, que diz respeito a um outro tipo de relação. Não necessariamente melhor ou pior que a da vida ordinária, mas diferente.

Mariah levanta da mesa e vai buscar alguma coisa em sua bolsa. Ricardo não entende a atitude de Mariah, fica até um pouco ofendido, está falando sobre algo que lhe é muito caro, meu deus.

Mas ele não parou de falar. Completou que, nesse trabalho, esse mesmo da casa, ainda por cima estamos indo muito em nós mesmos, compartilhando muito do que é nosso. Se embaralha um pouco com a fala, Mariah voltou, ela tem uns papéis na mão, Ricardo termina dizendo que já sente uma coisa muito forte por todos ali.

Mariah lê. Apenas lê. E diz tudo que precisava ser dito. Diz que comunicação é sempre amor, não tem outro meio. E amor é sempre acompanhado por confiança, confiança de que o outro é capaz; porque o outro sou eu. Se o outro é capaz, eu também me torno capaz. Isto é o oposto de paternalismo, patriarcado, capitalismo. É a liberdade. Quando eu posso receber o outro, então estou comunicando; quando eu escuto o outro e sei que posso falar também. Estes momentos não acontecem todos os dias porque estamos inseridos em fortes estruturas de poder e opressão – estão ao nosso redor, por dentro, por toda parte. Vivemos num mundo que não quer que sejamos tocados porque se formos, nos tornaremos poderosos e capazes de mudar as coisas. Teatro político é portanto qualquer teatro voltado para esta noção básica de respeito aos seres humanos como iguais. E estar sempre em movimento porque nada está de fato completo e finalizado. O ator finge que finge. E este texto foi escrito para ser jogado no mar.

Não há mais nada a ser dito, pois. Apagamos a vela. Escuro.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Onde está o amor?

Lavando o rosto no banheiro. Enquanto isso, lá fora, responde-se a um guardanapo de papel com a pergunta "Onde está o amor?", condição para que entrem no banheiro. Quando todos entram, peço que alguém me leia o primeiro bilhete. Escovo os dentes durante a leitura.

"Eu venho tentando o silêncio. Tentando me distrair pra não me pegar pensando em você. Mas não é simples. Dá saudade. Das pernas juntas, dos beijos, das mãos nos cachos, do cheiro..." 

Esses dias me perguntaram, de supetão, num pedaço de guardanapo, onde estava o amor. Não soube o que responder, embora muito me tenha passado pela cabeça.

Sinto-me jogado de um lado para outro em meu desejo que, torpe, caminha trôpego, bêbado, numa tentativa risível de voltar pra casa.

Logo no dia seguinte à pergunta do guardanapo, recebi uma mensagem do Gabriel. Ele falava do seu silêncio, do meu, e das possíveis armadilhas que muitos silêncios juntos são capazes de engendrar, às vezes mesmo sem maldade aparente.

É difícil, muito difícil, caminhar sem tropeçar. Tanto quanto, pra mim, viver sem amar. Mas é só quando (suspensão) a gente caminha sem pensar - nas pedras fora do lugar, nas poças que respingam, nas formigas que inevitavelmente se mata, nos desvãos e nos desvios - é só quando a gente caminha sem pensar que não se corre o risco de cair. Que trabalho árduo é o de andar.

Eu acho que eu sinto saudade do futuro. De quando eu conseguir não pensar tanto.

Deus existe? Sim ou não?

E se lhe fosse comprovada a sua existência - ou mesmo sua não existência - isso mudaria seu comportamento no dia-a-dia?

Peço pra que alguém leia o segundo bilhete. Deixo o banheiro antes do fim da leitura.

"Sinto sua falta. De saber de você. De ver você evoluir. Sinto falta de muita coisa. Queria te lembrar disso, pra que a gente não caia em nenhuma armadilha do silêncio. Não quero jogo. Quero verdade, transparência e vontade. Então tá aqui a minha vontade de dizer o que sinto. Sinto falta."

apresentação Ricardo

Meu nome é Ricardo. Cabral. Cabral Pereira – mas é verdade é que Pereira é meu sobrenome renegado. Não sei, acho feio. Não gosto do som – Pereira. Nasci no dia 09 de abril de 1990, às quatro e vinte da manhã – e juro que foi quatro e vinte mesmo, pura ironia do destino. Sou brasileiro, homem e gay, vinte e quatro anos. Sou carioca mas nasci em Petrópolis. Petropolitano. Pouco antes do meu parto, minha mãe viajou para um antigo sítio da família, em Pedro do Rio. Ela já tinha feito o mesmo quando do nascimento da minha irmã mais velha e do irmão que nunca chagamos a conhecer. Queria que nascêssemos perto da natureza, no meio do mato e longe da cidade. O lugar depois foi vendido. Queria muito lembrar de lá.

Sou ator. E para poder ser ator, me desdobro nas aulas de espanhol e nos freelas de tradução, revisão e assessoria de imprensa. Faço qualquer coisa que der – mas aprendi que dignidade não se vende.

Sou de Áries, mas o elemento que menos tenho no meu mapa é fogo. A verdade é que sou um grande pisciano, com uma neca de fogo que me faz não ter medo de seguir em frente, por mais escuro que tudo pareça. Mas não tem jeito: sou da água do mar, lá do meio do oceano, onde tudo parece infinito demais, profundo demais, grande demais para que eu mesmo consiga... não sei.

Pensar em como me apresentar foi absolutamente desesperador. E sei que não me apresentei. O ponto é que é difícil dizer quem sou, porque olhando pra trás vejo quantas vezes já fui e não sou mais. As transformações da vida, as voltas em que ela nos leva, são fascinantes, mas também cansativas. As coisas nunca param, a roda sempre gira, e às vezes não tenho tempo nem mesmo de acostumar ao que virei e... já estou diferente de novo. Acho que é por isso que, olhando pro futuro, não sou desses que diz de boca cheia que quer viver cem anos. Não, é muita coisa. Não preciso de tanto. Não sei se aguento tanto. Viver dá muito trabalho.

domingo, 19 de outubro de 2014

Naquela mesa


"Naquela mesa", versão de Otto para a música composta por Sérgio Bittencourt

Transvendo


O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê o mundo.
É preciso tranver o mundo.
(Manoel de Barros)







"O Silêncio da Multidão", de Cidadão Instigado

Van Gogh

"O quarto", de Van Gogh


Salvador Dalí

Ilustração para o livro Les Chants de Maldoror, do conde de Lautréamont


Dormência. Mate-me. Dormir. Produzir. Não Produzir. Criar. Respeito. Respeito-me. As facas com que corto o tempo, MEU TEMPO, são as mesmas que cortam minha garganta fatigada de nada. Fatigada mesmo de tudo.
Ah, se meu tempo fosse meu e não seu.
(por Ricardo Cabral)