Demorei a entender que dia é hoje. Era o que eu escreveria primeiro mas – hoje é dia oito e devem ser umas dez e meia ou onze da manhã. Estou sentado aqui no meu quarto, o quartel general do barulho de toda a casa – não, sem material, vai. Estou sentado à mesa da sala, de frente para a janela. O Gabriel acabou de sair. É uma delícia estar só, depois de tanta mistura. Ontem, enquanto conversávamos, vez ou outra me batia um reflexo-jogo, momento daqueles em que os convidados, mesmo sem saber, atiram eles próprios a isca para entrar na rede-jogo-teia-casa-vazia. Mas me segurei. É preciso, me parece, reforçar os limites da vida e do jogo na hora de voltar pra casa. Pelo menos pra mim. Em 2014, lembro-me que foi chocante perceber a exaustão física do meu corpo no diia seguinte. Dessa vez – apesar de meu corpo estar um tanto atordoado – o que me gritou foi ontem à noite, quando transamos eu e Gabriel. Eu nunca, em toda minha vida, havia sentido meu corpo tão sensível ao toque. Nunca. Mesmo. As minhas terminações nervosas pareciam haver se elevado à potência mil e se espaçhado por todo meu corpo, que não ficava imune à nada. Mesmo. Não me reconheci em mim mesmo e me perguntei se seria isso um rastro daquela qualidade de presença do jogo. (Ao longo do dia, três desconhecidos puxariam papo comigo em situações improváveis, como no caixa do supermercado – mais rastro?) Parei de escrever um pouquinho para me espreguiçar. Durante a noite, muitas imagens pipocavam em minha cabeça. Sonho? Lembrança? Jogo? Largo a caneta, cruzo os braços, miro as árvores e tento recuperar um pouco da minha trajetória enquanto um pelo branco do Louis passa levitando pelo espaço. Um começo diferente. Não queria receber. Aliás, tive imensa dificuldade de receber as pessoas, apresentar a casa e dar as regras. Não queria, nunca queria, fazia com muito esforço e muito desgaste. Ontem, conversando com o Gabriel, me dei conta da importância desse momento e quero colocar para mim como desafio das próximas edições (não sei por que escrevi no plural, juro que pensei no singular) investigas as boas vindas. O Gabriel foi recebido por outro convidado e ele e seu grupo não foram apresentados à casa nem às regras. Ele comparou a sensação de sábado à do ensaio aberto e disse que havia outra qualidade de acolhimento. Da mesma forma, ainda que eu não soubesse do histórico de perdições da família-vovô-cosmos, sinto que eu poderia tê-los recebido com mais acolhimento. Quero que a recepção, para mim, seja um dispositivo-material, com algumas arestas abertas e outras fechadas – talvez isso me ajude. Vamos ver. Voltando ao (Louis passa pelo meu pé e paro para fazer-lhe um carinho – sempre achei engraçado, aliás, quem fala dar carinho) Voltando ao começo, enfim. Fiquei esperando no camarim. Criei um campo de atração e queria que alguém viesse até mim. Foi o Felipe, do ecomuseu. Meu primeiro material foi a morte-pássaro do meu avô-música. Ao longo das 24 horas, a partitura objeto-aleatório do meu mural passaria a ser dele, o meu avô que era música, música de passarinho revoada de pássaro. Eu não parei no primeiro quarto inteiro do jogo. Pulava de pessoa em pessoa, de material em material, de ação em ação. Foi muita, muita coisa. Mas não me senti ansioso. O fluxo era intenso, mas não senti que ele me atropelava. (Ah! Lembrei que a única vez que gostei da minha recepção/apresentação foi com Isis e Luiza, pensar sobre isso depois: terminamos no material da minha mãe.) Os momentos que encontrei para relaxar, durante esse tempo, foram ver as estrelas e ter conversa ao pé de ouvido; e fazer a Cachoeira de S. Jorge, que por algum motivo me despressurizava. Adorei: ver os convidados se contando na geladeira, me dar para a Isis cuidar, tirar várias fotos interiores (lembrar do final com chocolate!), me apropriar do GPcéu, tomar chá e não saber o que ia acontecer, ver o por-do-sol junto e não saber o que ia acontecer, contar os desastres, servir água. É importante pensar sobre a execução dos dispositivos. Como o Gabriel falou em nossa pequena primeira reunião. Quando se abriu uma cratera em mim e eu mergulhei sem volta na angústia, foi o dispositivo que me salvou. Não vou escrever sobre a Karen, pois já falei demais (demais mesmo) sobre ela de modo que não tenho vontade. Mas é preciso dizer que, para mim, ali também fui salvo pela ênfase sobre a ficção, sobre o trabalho, sobre a teatralidade. Os offs me parecem ainda mais importantes agora. Ah, não me senti mal, dessa vez, pelas pessoas com quem não estive: abracei-as e falei sobre isso com elas, sobre a saudade (as folhas acabaram e fui pegar mais) do futuro do pretérito – quero desenvolver mais isso. É preciso acostumar-se a estar em pesquisa, é preciso reler o papel que a Luiza me deu. Não posso perder aquilo jamais. Parece óbvio, eu sei, mas é preciso aceitar o mar aberto que é esse jogo. Que manhã, por exemplo. Que manhã do caralho. Efervescente, diferente de tudo o que acontecera até ali. Cafés, canções, correrias, comilança, crise, cozinha, tudo com cê. E mais: risadas, beijo na boca, apito dos infernos. Também gostei de que tenhamos falado muito do processo, com várias meta-conversas, especialmente nos dois últimos terços do jogo, mas acho que podemos encontrar uma forma de incorporar mais isso ao jogo. Repouso a caneta na mesa. Já falei tanto que estou perdido, não sei mais o que tenho a dizer por agora. Será que nossa casa também tem uma cruz? Santa Cruz. Será que nossa casa também é santa? Mover livro e fazer cafuné é como tomar chá e assistir por-do-sol. De todas as fogueiras da casa, a fogueira foi a menor das fogueiras. Cozinhar também é como mover livro. Por que não propus? Chega, não consigo mais escrever. Que bom que teremos outras 24 horas, sinto que tudo pode ser muito diferente e muito menos ansioso.
NOTAS SOBRE UMA CASA
- controle de presença + pergunta quanto vale no mesmo cantinho: um cantinho obrigatório
- como criar um fluxo de comunicação?
- começar os materiais com ações e tudo bem se não acontecer (xixi Mariah, varrer, fazer chá, escrever em guardanapo...)
- primeira metade pra fora, segunda metade pra dentro
- eu tive uma tarde ativa, uma noite despedaçada, uma meia-noite de entendimento, uma madrugada calma, uma manhã bem humorada, um meio-dia em que a casa era minha mesmo, e tinha gente por ali.
- terminar relação, fazer material do Samu e me apaixonar eram três dispositivos a que me propus. Cumpri os dois primeiros sem pensar, sem planejar, percebi agora, acho que a gente cria um mantra, tipo GPcéu. Não sei se outro motivo para a crise foi porque eu me apaixonei e fui abandonado ou porque tive prestes a me apaixonar e de repente não tive mais.
missões:
Investigar as boas vindas
Pensar ações que podem preceder cada material
Pensar materiais nos quais as boas vindas podem desembocar
Off
materiais:
olhar as estrelas com conversa ao pé do ouvido
gpcéu
desastres
servir água
saudade do futuro do pretério
entrevista com cigarro no banheiro
abraço que não se toca no box
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